Não há cultura que sobreviva à pressa
- Ana Vitória Tereza
- 21 de abr.
- 3 min de leitura
Recentemente tornei-me mãe, e neste movimento de pausa profunda comigo mesma, com a minha eu profissional e com a natureza. Em última instância com o oceano, passei a reparar no seguinte:
É difícil não perceber como a publicações nesta e outras redes estão ficando cada vez mais, todas iguais.
Frases replicadas, fórmulas prontas, "lições" previsíveis. A impressão é de que tudo tem a cara de ChatGPT.
Já tem quem chame toda essa imensidão de conteúdo produzido, de poluição de inteligência artificial. Porque de fato, falta alma. Falta pausa, respiro.
Falta aquele regionalismo, aquela gíria que só existe na sua região. Falta aquele "uai, sô", que nós Mineiros temos, sabe? Aquela frase que dá alma, que não necessariamente tem função, mas que traz aquele charme, que apenas aquela pessoa, naquele lugar, pode trazer. Aquele tal do borogodó que a gente do Brasil conhecem bem.
E parei para pensar... O que foi feito da inspiração?
Parece saudoso, mas buscar inspiração no horizonte parece cada vez mais raro.
Camões escreveu Os Lusíadas à beira-mar. O oceano não era apenas cenário: era motor de criatividade para a linguagem.
Nossa brasileiríssima Tarsila do Amaral, celebrou a cultura popular e o trabalhador brasileiro em "O Pescador", olhando para as cores da nossa costa.
Diversos rítimos são inspirados no oceano, o nossos próprios Samba, o Frevo, o Baião, Maracatu... Cada um refletindo a identidade daquele povo que pulsa ao lado das suas águas.
Mas entre tantas metas e métricas, será que ainda conseguimos olhar para o mar como fonte de inspiração?
Digo isso, porque o oceano continua a ser um respiro.
Uma possibilidade de pausa.
Um lugar para lembrar que somos mais corpos do que performance.
A cultura oceânica é feita do sentir: de marisqueiras que conhecem a lua e as marés, de festas populares que reúnem milhares de pessoas à beira-mar, da tipografia única de cada barco que passa pelas águas, dos ditados populares. De práticas que resistem à velocidade. E que, por isso, ensinam-nos sobre paciência, resiliência...
Não há pertencimento sem cultura. E não há cultura que sobreviva à pressa.
Não podemos esquecer que vivemos uma era marcada pela exaustão. Na quinta edição de um relatório de pesquisa feito pela AXA com a Ipsos mostra o que já sentimos: a saúde mental continua se deteriorando no mundo todo. Os números são alarmantes: 32% da população sofre atualmente de transtornos mentais, um número que se mantém estável desde 2023. Enquanto isso, 52% dos jovens adultos afirmam que o uso excessivo de mídias sociais e dispositivos digitais afeta negativamente a sua saúde mental.
Ano passado, a palavra nomeada pela Oxford foi “apodrecimento cerebral”. O nome é até difícil de pronunciar, mas a sensação é familiar, todos nós estamos suscetíveis a ela.
Falta sentido, significado, e falta cultura.
Neste ano que me tornei mãe, me lembrei de uma prática curiosa que fazemos no interior do Brasil, quando um bebê nasce. Enterramos o umbigo do bebê.
Sim, pode parecer estranho a primeira vista, mas é uma prática supercomum em cidades pequenas. Mas sabe aquele umbiguinho que cai? Ele mesmo, uma vez seco, pode ser enterrado numa espécie de ritual, num local que faça sentido para a família.
Antigamente, a prática era mais comum ainda. É um patrimônio imaterial: algo que não se consegue mesurar, nem colocar um valor, mas é simbólico, carrega significado e não pode ser medido pela lógica da produtividade.
Reza a tradição, que enterrar o umbigo pode nutrir o elo da criança com sua terra, fortalecendo os laços com o território. E atenção: o umbigo não pode ser enterrado em qualquer local, pois isso determinará a vida futura deste bebê. Enterrar embaixo de uma roseira: uma menina linda vai crescer. Perto de uma prefeitura: o filho vai ser político. Perto de uma porteira de fazenda: vai ser fazendeiro, e por aí vai: dependendo da inspiração.
O meu foi enterrado embaixo de uma jabuticabeira.
Para quem não conhece, a jabuticabeira é uma árvore endêmica da Mata Atlântica. Ela demora muito para crescer, tem árvores com mais de 200, 400 anos, e são todas lindas. Seu fruto é único, pois ele se dá diretamente no tronco, como uma verruguinha.
Temos muito para aprender com jabuticabas. Elas não seguem a lógica da velocidade. E isso faz todo sentido quando provamos seu fruto: delicioso, cheio de suco, que explode na boca com um sabor inegualável.
Mas voltando ao umbigo... Essa tradição, invisível aos olhos de um lindo e organizado Excel, ensina mais sobre sustentabilidade e a sua conexão pessoas e territórios, do que qualquer treinamento possa ensinar.
Não precisamos de mais pressa. Precisamos de intenção.
Por isso, neste mundo de urgências, escolher contemplar as jabuticabas, ouvir o barulho do mar, aprender com os conhecedores dos saberes locais, e respeitar o tempo da natureza não é improdutivo. É necessário.
Neste tempo em que tudo quer ser rápido, eu escolho ser jabuticabeira.
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